domingo, 8 de junho de 2008

Tráfico humano - O mal da Indiferença

Li, no Feminista Actual (também conhecido por "O Mal da Indiferença"), que Portugal continua a revelar-se ineficaz no combate ao tráfico humano. É um blogue escrito a três mãos deliciosamente atentas. Não há feminismo onde não houver um compromisso com as mais diversas causas sociais. É um dos poucos blogues que publica e reflecte sobre assuntos tão pouco abordados como o tráfico humano, mas os seus méritos não se esgotam aí. Vale a pena a visita.
O tráfico humano é a cabeça de um polvo que agarra umas pessoas para servirem outras. Falamos de escravatura, logicamente. Em todo o lado ela é ilegal mas existe em TODOS os países, ainda que assuma formas e proporções diferentes.
Alguns tornam-se escravos pelo seu próprio pé, quando fogem da guerra, da miséria ou do desemprego. O facto de se terem "escravizado" por iniciativa própria não os torna menos escravos. Na verdade, podemos mesmo dizer que o fizeram por iniciativa própria quando foram circunstâncias inóspitas (as tais garras do polvo) que os forçaram a tomar tal decisão?
Outros, as vítimas do tráfico doméstico, nascem escravos e trabalham gratuitamente (ou ridiculamente pagos só para comer, dormir e continuar a trabalhar, comer e dormir...) em nome de guerras ou em nome da prosperidade do seu país (de repente lembrei-me de Portugal, mas eu estava a falar da China não era?).
Por fim, há outros que são raptados para que o seu corpo seja vendido inteiro (na indústria do sexo) ou em partes (no tráfico de órgãos).
A escravatura dos nossos dias e da nossa geografia é composta por vítimas que são levadas, ou por via da força ou por via de promessas e mentiras, a endossar os números da exploração laboral e sexual (muitas vezes associada à exploração laboral).
Se é certo que a pobreza e a desigualdade tornam determinadas populações mais vulneráveis a isto, é também certo que mesmo que pobreza e desigualdade não existissem, o problema não estaria exterminado. Ele existe precisamente porque há traficantes e há traficantes porque há clientes. Todos eles devem ser severamente punidos e é estranho não se ouvir falar de casos em que haja punições realmente exemplares para estes criminosos.
Segundo o relatório anual do Departamento de Estado norte-americano, que analisou o comportamento de 170 países face a este crime, “Portugal não cumpre ainda os padrões mínimos para eliminar o tráfico de seres humanos”. As penas são mínimas e, para se ter uma ideia, em 2006, 65 pessoas foram acusadas deste crime, sendo que apenas 49 foram condenadas e somente oito cumpriram, efectivamente, pena.
Porquê? Vejamos, quem é que os acusa? Quem é que ousa acusar, em nome individual, suspeitos de integrar uma rede de tráfico, arriscando a sua própria pele sem qualquer garantia de salvaguarda institucional? Que protecção é efectivamente dada às vítimas ou aos denunciantes? E quantas vezes as próprias denunciantes são, também elas, julgadas e presas, sendo tratadas igualmente como criminosas quando deviam ser vistas como vítimas? Qual é a barreira exacta entre um imigrante ilegal e uma pessoa traficada?
No ano passado, ainda durante a presidência portuguesa da UE, a «Declaração do Porto», sobre Tráfico de Seres Humanos, foi pomposamente lida por Jorge Lacão que orgulhosamente viria a dizer que Portugal era “um dos países mais avançados nesta matéria”. Presumi que estivesse a referir-se em matéria de justiça frouxa, à medida do bandido, por isso considerei-o coberto de razão. Estamos muito “avançados” e temos senhores muito avançados a “tomar conta” de nós. Recentemente até houve um senhor que veio propor que a violência doméstica deixasse de ser crime público. Isto ajuda o agressor ou a vítima?
Lê-se no Feminista Actual: “O relatório caracteriza Portugal como um país de destino e trânsito para mulheres, homens e crianças provenientes principalmente do Brasil, Ucrânia, Moldávia, Rússia, Roménia e África para fins de exploração sexual e laboral. Anualmente, cerca de 800 mil pessoas são traficadas; 80 por cento das vítimas é do sexo feminino e 50 por cento são menores.”. Isto são, naturalmente, estimativas a nível global porque ninguém consegue contabilizar de forma segura o número de pessoas traficadas.
A comunicação social anunciou que daqui a cerca de um mês será inaugurado o primeiro Centro de Acolhimento e Protecção dirigido a vítimas de tráfico (iol e rtp – parece que os únicos a noticiar isto no ciberespaço - noticiaram mulheres, em vez de vítimas, como se também não houvesse crianças e homens traficados – ainda que em menor proporção, é certo). Logicamente, a criação do CAP não é a única medida (neste caso, de apoio às vítimas).
O Portal do Governo anunciou (faz agora um ano) o seu I Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos (2007-2010) , por isso sobram ainda cerca de dois anos para pôr em prática todas as medidas que lá vêm descritas.
Ou eu ando muito distraída ou o governo anda a atrasar-se. Apetece-me comentar alguns desses planos contra o tráfico:

- promoção de estudos no âmbito do tráfico de seres humanos (creio que o único estudo desenvolvido em Portugal depois disto foi um encabeçado por Boaventura de Sousa Santos, cujas conclusões ainda não tive a oportunidade de ler);
- encaminhar fundos para a investigação científica de forma a promover conhecimento, actualizado e diversificado sobre o tráfico de seres (vai ser bonito de se ver o governo a encaminhar fundos para a investigação científica na área das humanidades);
- estabelecimento de protocolos com empresas do sector da Internet (servidores de messenger e chats) para que criem “caixas informativas” nos acesos aos seus serviços (mais útil do que levarmos com publicidade comercial);
- apoiar uma longa-metragem que se centre nesta problemática (câmeras na mão! Ainda têm 2 anos para criar o filme!);
- apoiar no âmbito da disciplina de educação sexual o desenvolvimento de programas que promovam a tolerância zero contra a violência e discriminação de género (existe mesmo uma disciplina de educação sexual?);
- criação de uma linha (a “Declaração do Porto” prevê que seja uma linha internacional comum a todos os países);
- incrementar o número de fiscalizações a actividades laborais mais susceptíveis de albergarem focos de criminalidade organizada relacionada com o tráfico de seres humanos (a ASAE serve para isto mesmo);
- canalização de parte dos bens e activos apreendidos no âmbito de investigações/condenações por tráfico de seres humanos para programas de apoio a vítimas de tráfico (a outra parte é aquela que nunca ninguém sabe ao certo para onde vai).
Falta uma coisa deveras importante que é a efectiva punição dos criminosos, promover mecanismos na lei que não deixem espaço para fugas à justiça (e as fugas costumam ser "espaçosas").
É bom relembrar que num país de prescrições e de prisões domiciliárias o crime compensa. Alguém me sabe informar o que aconteceu aos senhores da Passerelle, acusados de 1200 crimes?
Não gosto de reproduzir números, eles estão sempre incorrectos e as fontes nunca são unânimes, contudo, fi-lo para que melhor ideia se possa ter da extensão do crime.
No âmbito do projecto DAPHNE (programa de combate à violência) foi elaborado um guia dirigido a profissionais e pessoas que se queiram envolver na luta contra o tráfico. É um guia interessante para a prestação de apoio às vítimas e está traduzido em português aqui.

Condessa X

P.S. - Enquanto não se cria e divulga a porcaria de uma linha internacional de apoio, nada melhor do que recorrer a quem mais parece perceber do assunto (não sei se percebe realmente, mas quero acreditar que sim): A APAV tem a linha de apoio à vítima 707 20 00 77 (que é triste não ser gratuita).

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